Nesta aula será estudada a prevalência do negociado sobre o legislado no Direito Coletivo do Trabalho.
Trata-se, possivelmente, da alteração mais profunda e emblemática promovida pela Reforma Trabalhista, representando ruptura significativa com a lógica anterior adotada pela legislação trabalhista.
Antes da Reforma, prevalecia o princípio da norma mais favorável, pelo qual, diante da existência de duas normas aplicáveis a um mesmo instituto jurídico, o intérprete deveria optar por aquela que fosse mais benéfica ao trabalhador.
Com a Reforma Trabalhista, essa sistemática foi substancialmente alterada, estabelecendo-se uma nova lógica centrada na flexibilização e, em alguns casos, na desregulamentação das relações de trabalho.
É importante distinguir esses dois conceitos:
A Reforma Trabalhista priorizou principalmente a flexibilização, ao ampliar substancialmente o poder normativo dos instrumentos coletivos de trabalho, como as convenções e os acordos coletivos.
Isso está expressamente previsto no art. 611-A da CLT, introduzido pela Lei da Reforma. Este dispositivo apresenta um rol exemplificativo com 15 hipóteses em que o negociado (isto é, aquilo que foi pactuado entre as entidades sindicais) prevalece sobre o legislado, ainda que a lei seja mais favorável ao trabalhador.
Entre as hipóteses expressamente previstas em que se admite a prevalência do negociado sobre o legislado, destacam-se:
As disposições constantes em acordos ou convenções coletivas de trabalho que tratem sobre a jornada de trabalho prevalecem sobre a lei, desde que respeitados os limites constitucionais de 8 horas diárias e 44 horas semanais.
Também há prevalência do negociado nas normas que tratam do banco de horas. O banco de horas anual somente pode ser pactuado por negociação coletiva, enquanto o banco de horas com compensação semestral pode ser pactuado por acordo individual escrito.
Trabalhadores com jornada superior a seis horas possuem, por lei, direito a um intervalo intrajornada mínimo de 1 hora para repouso e alimentação.
No entanto, é possível a redução desse intervalo para no mínimo 30 minutos, desde que haja acordo ou convenção coletiva de trabalho.
Ainda que este programa não esteja mais em vigor, sua análise é relevante. O PSE foi instituído pela lei 13.189/2015, como mecanismo de layoff, com o objetivo de preservar empregos em momentos de crise econômica.
Permitia às empresas com dificuldades financeiras reduzir em até 30% a jornada de trabalho e o salário, com compensação parcial pelo governo. Neste caso, 50% da perda salarial era paga pelo governo, com base no valor do seguro-desemprego. O programa foi prorrogado diversas vezes, até encerrar-se em 31 de dezembro de 2021.
Durante sua vigência, foi possível estipular regras em sentido contrário às da legislação por meio de instrumentos coletivos, dada a previsão de prevalência do negociado sobre o legislado.
O instrumento coletivo pode dispor, com prevalência sobre a lei, sobre esses temas.
Os planos de cargos e salários consistem em conjuntos de normas e diretrizes que organizam a evolução profissional na empresa, contendo, por exemplo, definições de cargos, funções, critérios de promoção, faixas salariais e requisitos para progressão.
É possível a prevalência do negociado sobre o legislado nas normas coletivas que versem sobre o regulamento de empresa, entendido como o conjunto de regras internas organizadas pelo empregador para disciplinar a atividade empresarial.
O negociado também prevalece sobre a lei quando trata da representação dos trabalhadores no ambiente laboral.
O art. 11 da Constituição Federal assegura que, nas empresas com mais de 200 empregados, deve haver eleição de um representante dos trabalhadores, com a finalidade de promover o entendimento direto com os empregadores.
Esse tipo de representação não conflita com a atuação dos sindicatos, conforme previsto em convenção da OIT - Organização Internacional do Trabalho.
Mesmo com essa regulamentação legal, os instrumentos coletivos podem dispor em sentido contrário, e, quando isso ocorrer, o negociado prevalecerá sobre o legislado, conforme estabelecido no art. 611-A da CLT.
Tema | Situação Antes da Reforma | Situação Após a Reforma (Art. 611-A CLT) |
Jornada de trabalho | Regida pela lei, com limites rígidos | Pode ser ajustada por acordo coletivo, respeitando limites constitucionais |
Banco de horas | Apenas por negociação coletiva | Banco anual por acordo coletivo; semestral por acordo individual |
Intervalo intrajornada | Mínimo de 1 hora por lei | Pode ser reduzido para 30 min via acordo coletivo |
Programa Seguro-Emprego (PSE) | Regido por lei específica | Flexibilização autorizada por instrumento coletivo |
Planos de cargos e salários | Seguiam critérios legais | Podem ser definidos por instrumento coletivo |
Regulamento de empresa | Normas internas subordinadas à CLT | Pode prevalecer via acordo/convenção coletiva |
Representação no local de trabalho | Apenas via previsão legal (CF/88) | Det. nos arts. 510-A a 510-D da CLT; negociado pode prevalecer |
O art. 611-A, VIII, da CLT estabelece hipóteses em que as disposições constantes de instrumentos coletivos — como o acordo ou a convenção coletiva de trabalho — prevalecem sobre a legislação.
Nesse inciso, encontram-se três temas distintos: o teletrabalho, o regime de sobrejornada (ou sobreaviso) e o trabalho intermitente.
Cada um desses temas comporta regulamentações específicas que, mesmo previstas em lei, podem ser substituídas por normas coletivas.
O teletrabalho foi regulamentado pela Reforma Trabalhista, abrangendo os arts. 75-A a 75-F da CLT, e sofreu modificações recentes pela lei 14.442.
Conforme o art. 75-B, caput, da CLT, considera-se teletrabalho a prestação de serviços preponderante ou não fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e comunicação, sem que isso configure trabalho externo.
Quanto à sobrejornada, também é possível que o que for previsto em acordo ou convenção coletiva prevaleça sobre o previsto legalmente.
O regime de sobrejornada está disciplinado no art. 244, § 2º, da CLT.
Nessas situações, o empregado não está efetivamente prestando serviço, mas permanece vinculado ao contrato de trabalho e à disposição do empregador. Assim, ele faz jus ao recebimento de um terço do salário-hora normal.
A legislação determina que cada escala de sobreaviso tenha duração máxima de 24 horas, e as horas em que o trabalhador permanecer nessa condição serão remuneradas com um terço do salário-hora normal.
No momento em que o trabalhador for convocado, saindo da condição de sobreaviso e passando a prestar serviço efetivamente, passa a receber o salário normal.
Essa disciplina legal, no entanto, pode ser modificada por instrumento coletivo de trabalho, que terá prevalência sobre a lei.
O trabalho intermitente é outra modalidade introduzida pela Reforma Trabalhista.
O contrato de trabalho intermitente é aquele no qual a prestação de serviços, com subordinação, não ocorre de forma contínua.
Há alternância entre períodos de prestação de serviços e de inatividade, os quais podem ser determinados em horas, dias ou meses, independentemente da atividade exercida ou da categoria econômica, com exceção dos aeronautas, que têm legislação própria.
A definição está no art. 443, § 3º, da CLT, enquanto a regulamentação mais detalhada encontra-se no art. 452-A da CLT, que trata, por exemplo, sobre a forma de convocação do trabalhador e as penalidades aplicáveis em caso de descumprimento, tanto por parte do empregado quanto do empregador.
Em 2019, ao julgar o processo de número 10454-06.2018.5.03.0097, o TST validou o contrato de trabalho intermitente. O questionamento chegou ao STF, que, em dezembro de 2024 entendeu pela validação desse tipo de contrato nas ADIns 5.826, 5.829 e 6.154.
Outro ponto em que o negociado pode prevalecer sobre o legislado diz respeito à remuneração por produtividade ou desempenho individual, hipótese aplicável especialmente aos trabalhadores comissionistas, ou àqueles que recebem por produção, tarefa ou metas.
Nesses casos, a remuneração pode ser totalmente variável ou composta por parte fixa e parte variável, a depender do desempenho individual do trabalhador.
A Constituição Federal, em seu art. 7º, VII, garante a todos os trabalhadores o direito ao recebimento de, no mínimo, um salário mínimo.
Essa negociação, no entanto, poderá tratar dos critérios e formas de cálculo da remuneração variável.
Também prevalece sobre a lei a disposição do instrumento coletivo que trata do registro de jornada, especialmente na hipótese do ponto por exceção.
No regime tradicional de controle de jornada, o trabalhador realiza marcações ao iniciar o expediente, ao sair para o intervalo intrajornada, ao retornar deste intervalo, e ao encerrar a jornada.
Já no regime de ponto por exceção, essas marcações ocorrem apenas quando houver desvios, ou seja, o trabalhador que cumpre rigorosamente os horários não realiza registro. A marcação será feita somente nas exceções, como em caso de realização de horas extras.
A discussão sobre a legalidade desse modelo foi superada com a promulgação da lei da liberdade econômica (lei 13.874/19), que passou a admitir expressamente o ponto por exceção.
Mesmo antes disso, essa forma de controle já podia ser implementada por meio de norma coletiva, uma vez que se trata de um direito passível de flexibilização pela negociação coletiva.
A legislação também permite, por meio de norma coletiva, a troca de dias de feriado.
Ressalta-se que essa hipótese não implica a supressão do direito ao descanso nos feriados, o qual permanece assegurado. Trata-se apenas da possibilidade de alteração da data em que o feriado será usufruído.
Por exemplo, um feriado que recaia em uma quarta-feira pode ser transferido, por força de acordo coletivo, para a sexta-feira subsequente, permitindo que os trabalhadores usufruam de um feriado prolongado quando a quinta-feira também for feriado.
Essa prática busca melhorar o aproveitamento do descanso, evitando feriados isolados no meio da semana.
Outro ponto em que a norma coletiva pode prevalecer sobre a legislação é quanto ao enquadramento do grau de insalubridade.
Trabalhadores que exercem atividades prejudiciais à saúde, expostos a agentes físicos, químicos ou biológicos listados na Norma Regulamentadora 15 (NR-15) do Ministério do Trabalho e Emprego, têm direito ao adicional de insalubridade, cujo valor varia de acordo com o grau de nocividade: mínimo (10%), médio (20%) ou máximo (40%).
Por exemplo, um trabalhador que opera tratores e sofre exposição constante a vibrações de mãos e braços está sujeito a desenvolver doenças osteomusculares, o que caracteriza um risco à saúde. Nesses casos, a NR-15 prevê o adicional de 20% (grau médio).
Entretanto, o art. 611-A, XII, da CLT, permite que acordo ou convenção coletiva disponha de forma diferente, reduzindo o grau de insalubridade, por exemplo, de médio para mínimo.
Essa possibilidade tem sido criticada pela doutrina e pela jurisprudência, pois se entende que as normas de saúde e segurança no trabalho constituem normas de ordem pública e, portanto, não poderiam ser objeto de flexibilização.
O TST, por meio de informativo de jurisprudência, registrou decisão da 3ª turma nesse sentido, entendendo que tais normas integram um patamar mínimo civilizatório e são indisponíveis.
No entanto, essa decisão não tem efeito vinculante, e o art. 611-A, XII, continua vigente, permitindo, em tese, a negociação do grau de insalubridade por meio de norma coletiva.
Também é admitida a prorrogação da jornada em ambientes insalubres mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.
A legislação exige, como regra, autorização do Ministério do Trabalho e Emprego para que trabalhadores em ambientes insalubres prestem horas extras. Essa autorização pressupõe inspeção prévia e análise do ambiente de trabalho.
A única exceção expressa a essa exigência está no art. 60, parágrafo único, da CLT, que dispensa tal autorização para os trabalhadores submetidos ao regime de 12x36 (doze horas de trabalho por doze horas de descanso).
Outro tema que pode ser regulado por norma coletiva é a concessão de prêmios e incentivos.
Após a Reforma Trabalhista, os prêmios passaram a ter natureza indenizatória, e não mais salarial.
Eles correspondem a liberalidades concedidas pelo empregador a empregados ou grupos de empregados que alcançaram desempenho extraordinário. Podem ser oferecidos em forma de bens, serviços ou valores em dinheiro.
A norma coletiva pode estabelecer os critérios para a concessão desses prêmios, bem como ajustar dispositivos legais pertinentes.
Por fim, também é admitida a prevalência da norma coletiva sobre a legislação em relação à PLR - participação nos lucros e resultados.
A lei 10.101/00 estabelece que a PLR deve ser paga no máximo duas vezes ao ano. No entanto, os instrumentos coletivos podem prever formas distintas de pagamento, inclusive com maior frequência, como três, quatro ou cinco vezes por ano, sendo que tais disposições terão prevalência sobre a legislação ordinária.
Veja um quadro-resumo:
Tema | Regra legal (CLT) | Possibilidade por norma coletiva |
Teletrabalho | Arts. 75-A a 75-F (uso de TICs fora do local de trabalho, sem caracterizar trabalho externo) | Condições diferentes podem ser ajustadas (Art. 611-A, VIII) |
Sobreaviso | Art. 244, §2º (remuneração de 1/3 do salário por escala de até 24h em casa aguardando chamado) | Pode modificar forma de remuneração e escalas (Art. 611-A, VIII) |
Trabalho intermitente | Art. 443, §3º e 452-A (alternância de períodos de serviço e inatividade, com contrato escrito) | Condições diferentes da CLT podem ser negociadas (Art. 611-A, VIII) |
Remuneração por produtividade | Art. 7º, VII da CF (mínimo de 1 salário, mesmo se remuneração variável) | Norma coletiva pode tratar dos critérios e cálculo |
Registro de jornada | Lei 13.874/19 admite ponto por exceção | Pode implementar ponto por exceção antes mesmo da lei (Art. 611-A, X) |
Troca de feriados | Possível mediante norma coletiva, não suprime direito ao descanso | Pode alterar data do feriado (Art. 611-A, XI) |
Grau de insalubridade | Adicional: 10%, 20% ou 40% conforme grau de risco (NR-15) | Pode rebaixar grau de insalubridade (Art. 611-A, XII) |
Prorrogação de jornada insalubre | Art. 60 exige licença prévia, exceto para regime 12x36 | Pode pactuar prorrogação sem autorização do MTE (Art. 611-A, XIII) |
Prêmios e incentivos | Natureza indenizatória (liberalidade do empregador por desempenho extraordinário) | Critérios e regras de concessão podem ser definidos coletivamente |
Participação nos lucros (PLR) | Lei 10.101/00 permite até 2 pagamentos por ano | Instrumentos coletivos podem alterar frequência de pagamento |