Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
A Constituição Federal defende a proteção especial da família, assegurando a assistência de todos os seus membros e impedindo a violência entre eles. A partir deste dispositivo, o Estado se obriga a conter as violências familiares e domésticas, dentre elas a violência doméstica contra a mulher.
A jurisprudência e a doutrina são unânimes ao apontar esse dispositivo como fundamento constitucional da Lei Maria da Penha.
O Brasil ratificou algumas convenções internacionais acerca da violência contra a mulher, a saber:
Com a existência destes dispositivos internacionais ratificados no Brasil, a adoção de uma lei interna se tornou uma hipótese cada vez mais plausível, sendo que alguma proteção contra a violência doméstica já estava sendo formada.
Maria da Penha foi uma vítima de violência doméstica na realidade. Durante 23 anos foi agredida pelo marido, que tentou assassiná-la duas vezes em 1993. Na primeira tentativa, o marido a deixou paraplégica com um tiro. Na segunda, o homem usou de eletrocussão e afogamento.
Somente depois de 18 anos da denúncia das tentativas de homicídio, o marido de Maria da Penha foi preso.
O Brasil chegou a ser denunciado à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Com isso, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos elaborou o Relatório 54/2001, que apontou a ausência de medidas concretas brasileiras contra a violência de gênero.
A ineficácia das leis brasileiras perante o caso destacou a necessidade de normativas mais específicas para a violência doméstica contra a mulher.
A partir disto, a Lei Maria da Penha foi elaborada e promulgada.
A violência doméstica deve ser notificada conforme a lei. Antes de 2019, a notificação era prevista na lei 10.778/03. Os agentes da saúde que identificassem indícios da violência em pacientes deveriam comunicar as autoridades sanitárias para registro estatístico de política pública. Porém, não havia prazo para a notificação e a polícia não era necessariamente envolvida. O objetivo era a mera coleta de dados.
Com a lei 13.931/19, a notificação compulsória dos agentes da rede pública e privada de saúde passaram a contemplar a denúncia para autoridades policiais, com o prazo de 24 horas. Sendo assim, além do registro estatístico para controle da violência por políticas públicas, cada caso específico obrigatoriamente será tratado pelas autoridades policiais.
O STJ, no informativo 732, firmou entendimento que a aplicação da Lei Maria da Penha abrange também as mulheres transexuais:
Tema: Violência doméstica contra mulher trans. Aplicação da Lei n. 11.340/2006. Lei Maria da Penha. Afastamento de aplicação do critério exclusivamente biológico. Distinção entre sexo e gênero. Identidade. Relação de poder e modus operandi. Alcance teleológico da lei.
Destaque: A Lei n. 11.340/2006 (Maria da Penha) é aplicável às mulheres trans em situação de violência doméstica.
O posicionamento veio em julgamento de recurso especial:
RECURSO ESPECIAL. MULHER TRANS. VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. APLICAÇÃO DA LEI N. 11.340/2006, LEI MARIA DA PENHA. CRITÉRIO EXCLUSIVAMENTE BIOLÓGICO. AFASTAMENTO. DISTINÇÃO ENTRE SEXO E GÊNERO. IDENTIDADE. VIOLÊNCIA NO AMBIENTE DOMÉSTICO. RELAÇÃO DE PODER E MODUS OPERANDI. ALCANCE TELEOLÓGICO DA LEI. MEDIDAS PROTETIVAS. NECESSIDADE. RECURSO PROVIDO. (REsp 1977124/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 05/04/2022,)
- É descabida a preponderância, tal qual se deu no acórdão impugnado, de um fator meramente biológico sobre o que realmente importa para a incidência da Lei Maria da Penha, cujo arcabouço protetivo se volta a julgar autores de crimes perpetrados em situação de violência doméstica, familiar ou afetiva contra mulheres. Efetivamente, conquanto o acórdão recorrido reconheça diversos direitos relativos à própria existência de pessoas trans, limita à condição de mulher biológica o direito à proteção conferida pela Lei Maria da Penha.
3. A vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos não pode ser resumida tão somente à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas e o Direito não se deve alicerçar em argumentos simplistas e reducionistas.
4. Para alicerçar a discussão referente à aplicação do art. 5º da Lei Maria da Penha à espécie, necessária é a diferenciação entre os conceitos de gênero e sexo, assim como breves noções de termos transexuais, transgêneros, cisgêneros e travestis, com a compreensão voltada para a inclusão dessas categorias no abrigo da Lei em comento, tendo em vista a relação dessas minorias com a lógica da violência doméstica contra a mulher.
- A balizada doutrina sobre o tema leva à conclusão de que as relações de gênero podem ser estudadas com base nas identidades feminina e masculina. Gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres. Uma análise de gênero pode se limitar a descrever essas dinâmicas. O feminismo vai além, ao mostrar que essas relações são de poder e que produzem injustiça no contexto do patriarcado. Por outro lado, sexo refere-se às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, bem como ao seu funcionamento, de modo que o conceito de sexo, como visto, não define a identidade de gênero. Em uma perspectiva não meramente biológica, portanto, mulher trans mulher é.
Nesse contexto vem a Edição Nº 205 da Jurisprudência em Teses:
As medidas protetivas previstas na Lei n. 11.340/2006 são aplicáveis às minorias, como transexuais, transgêneros, cisgêneros e travestis em situação de violência doméstica, afastado o aspecto meramente biológico.