Planos do Negócio Jurídico
Existência
Estudamos os aspectos gerais do Negócio Jurídico, sua formação, desenvolvimento, e os detalhes da sua incorporação no ordenamento jurídico brasileiro. Agora, iremos analisar o que a doutrina chama de planos do negócio jurídico.
O Negócio Jurídico contem três elementos essenciais: existência, validade e eficácia. Esta tripartição teve como precursor o jurista Pontes de Miranda (1892-1979), tendo o Professor Antonio Junqueira de Azevedo (1939-2009) sido um dos seus mais importantes estudiosos. Deve-se dizer, porém, que, segundo Renan Lotufo, Hans Kelsen (1881-1973) já havia anteriormente desenvolvido a Teoria do Negócio Jurídico na sua Teoria Pura do Direito.
Enfim, antes de estudarmos cada um destes planos, é importante alertar que o professor Moreira Alves, ao elaborar a parte correspondente no Código Civil de 2002, preferiu adotar a teoria Bipartida (diferenciação entre ato jurídico e negócio jurídico) à qual prescinde-se a existência, devendo, esta, ser presumida. Para o professor Moreira Alves, ao se legislar, já se está no campo da validade, que é posterior à existência, não sendo esta, então, necessária.
Para verificação dos planos que iremos estudar, costuma-se adotar o chamado Método da Exclusão, por meio do qual a gente consegue aferir progressivamente se o negócio jurídico é existente, se é válido e se é eficaz.
O Plano da Existência é dos elementos que integram a essência de uma coisa, sua composição. Neste plano específico, não se pergunta pela validade ou eficácia de um negócio jurídico. Basta somente a realidade de sua existência.
Não é unânime entre os doutrinadores quais são estes elementos que se situam no plano da existência. Para Carlos Roberto Gonçalves os elementos são:
- Declaração de vontade;
- Finalidade negocial, e
- Idoneidade do objeto.
A Declaração de vontade figura como elemento de existência porque não pode haver negócio jurídico se a vontade não for exteriorizada. É precisamente a declaração, segundo Caio Mário (1913-2004), que torna a vontade conhecida.
A manifestação ou declaração da vontade, como sabido, pode ser:
- , caso ela se dê de modo explícito, permitindo o conhecimento imediato;
- , caso seja deduzida pelo comportamento do agente, ou
- , quando não se dá de maneira expressa, mas a lei considera presente dados alguns comportamentos do agente.
Ainda sobre a Declaração de vontade, que é um dos aspectos da existência do negócio jurídico, devemos tratar de dois aspectos importantes: o silêncio e a reserva mental.
Para que haja uma Declaração de vontade, via de regra, vimos que é sempre necessária alguma manifestação, comportamento ativo do agente ou uma presunção em virtude da lei.
Assim, é difícil concluir que o silêncio tenha alguma relevância para efeitos de declaração de vontade. Porém, veremos, o silêncio é de grande relevância aos efeitos no negócio jurídico. A título de exemplo, vejamos o artigo 111 do Código Civil Brasileiro de 2002:
Artigo 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa.
Fica claro, assim, que o silêncio pode, sim, ser interpretado como manifestação de vontade quando a lei lhe atribui este efeito, conferindo, destarte, existência ao negócio jurídico.
Com relação à reserva mental, trata-se de uma situação juridicamente prevista em que um dos declarantes oculta a sua intenção, não desejando, no seu íntimo, o efeito que ela declara externamente querer.
Neste caso, se a outra parte desconhecer a reserva mental, ou seja, se não sabia dos desígnios íntimos do outro agente, que são contraditórios à declaração de vontade, não há repercussão jurídica alguma.
Por outro lado, se a pessoa a quem foi dirigida a declaração conhece a reserva mental, acaba configurando-se, segundo Moreira Alves, uma hipótese de ausência de vontade, e, por conseguinte, de inexistência do negócio jurídico.
Por fim, Carlos Roberto Gonçalves cita como exemplo o casamento celebrado por autoridade incompetente em razão da matéria, como um delegado de polícia. É o nada jurídico. Seria um casamento “à lá Bonnie e Clyde”, mas, de qualquer forma, inexistente.
O mesmo raciocínio se aplicava, antes das transformações recentes (debatidas no Curso Hermenêutica Jurídica, mais à frente), ao casamento de pessoas do mesmo sexo. Este tipo de casamento, antes da aplicação da hermenêutica constitucional pelo STF ao tema, era considerado inexistente.
Além da declaração de vontade, figura como elemento de existência do negócio jurídico a finalidade negocial. Finalidade negocial traduz-se no propósito de adquirir, conservar, modificar ou extinguir direitos.
Por fim, segundo Francisco Amaral, temos a idoneidade do objeto, que seria a apresentação dos requisitos ou qualidades que a lei exige para que o negócio produza os efeitos desejados.
Um exemplo dado por Silvio Rodrigues (1917-2004) é o negócio jurídico do mútuo. No mútuo, segundo o artigo 586 do Código Civil, só se consideram objetos idôneos as coisas fungíveis, e para o comodato, segundo o artigo 579, do Código Civil, as infungíveis.
Validade
Dando continuidade ao estudos dos planos do negócio jurídico, e uma vez já visto o plano da existência, iremos ver o plano seguinte da tripartição, o plano da validade.
O plano da validade se situa no campo dos requisitos do negócio jurídico, ou seja, das condições necessárias para o atingimento de um determinado fim. O artigo 104 do Código Civil de 2002 estabelece que a validade do negócio jurídico requer:
- Agente capaz;
- Objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e
- Forma prescrita ou não defesa em lei.
Quanto ao agente capaz, fala-se da capacidade de fato ou de exercício, que somente alguns detém. Esta é aquela que habilita o agente a exercer direitos e obrigações na vida civil. Não se trata da capacidade de gozo de direitos, uma vez que esta é comum a toda pessoa humana, é universal.
Quanto à incapacidade absoluta, é importante notar que com a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015), a pessoa com deficiência não é considerada mais absolutamente incapaz. A incapacidade absoluta, então, passa a ser exclusividade dos menores de 16 anos.
Ou seja, o agente absolutamente incapaz, no caso, o menor de 16 anos, não pode exercer por si só os atos da vida civil, sob pena de nulidade, dado que ser agente capaz é um dos requisitos do plano de validade do negócio jurídico.
Além do agente capaz, o negócio jurídico, para que seja válido, requer a presença de um objeto lícito, possível, determinado ou determinável. Vamos ver cada um destes conceitos.
Segundo Carlos Roberto Gonçalves, objeto lícito é aquele que não atenta contra a lei, a moral ou os bons costumes. Assim, se o objeto do contrato é imoral, não é raro os tribunais aplicarem o princípio de que, ninguém pode se valer da própria torpeza, ou então, se ambas as partes agiram com torpeza, malandragem, nenhuma delas pode exigir, por exemplo, em um contrato, a devolução da importância que pagou.
Com relação à possibilidade, ou seja, objeto possível, tem-se que uma eventual impossibilidade pode se dar por razões físicas ou jurídicas. A impossibilidade física nada mais é do que um evento que não pode acontecer em virtude das leis físicas ou naturais.
Por exemplo, se o Luan Santana resolve colocar em termos contratuais o que ele canta, “Dou-lhe o sol, dou-lhe o mar, e como contrapartida espero obter seu coração”, tal contrato seria, obviamente, inválido por se tratar de objeto impossível; tanto quanto exagerado. Imagina, o sol e o mar?! Um Neruda, um disco do Chico, um olhar profundo e um par de ingressos para o Coldplay já seriam suficientes, Luan Santana! Mas enfim.
Já a impossibilidade jurídica se dá quando o próprio ordenamento jurídico expressamente veda a realização de um negócio jurídico, com relação a determinado bem. Como, por exemplo, a herança de pessoa viva.
Por fim, diz-se do objeto que deve ser determinado ou determinável. Por essa razão, por exemplo, é permitida a venda de coisa incerta, em que indicação se dá pelo gênero ou pela quantidade.
Já como último requisito de validade do negócio jurídico, temos a forma. No nosso direito, a regra é de que a forma é livre. Podem as partes escolher se celebram um negócio jurídico por instrumento público, particular ou verbalmente. Com exceção dos casos em que a lei determina uma forma específica como sendo essencial para validade do negócio, como ordena o artigo 107 do Código Civil de 2002.
Exemplo clássico é a compra e venda de bem imóvel que custe mais de 30 salários mínimos, caso este em que se exige escritura pública. Não atendido este requisito legal, considera-se nulo o negócio jurídico, nos termos do artigo 166, inciso IV do Código Civil de 2002.
Eficácia
Trataremos agora daquele que, segundo o Professor Antônio Junqueira de Azevedo, é o último plano do negócio jurídico que a mente humana deve examinar. É o plano da eficácia.
Ao analisarmos este plano, não iremos tratar de toda e qualquer eficácia prática do negócio, mas sim da eficácia jurídica. Especialmente, da sua eficácia própria ou típica, isto é: da eficácia dos direitos manifestados como desejados.
Geralmente, a doutrina costuma tratar o plano da eficácia sob o título de elementos acidentais do negócio jurídico, que são basicamente:
- Termo;
- Condição, e
- Modo ou encargo.
Elementos acidentais, segundo Carlos Roberto Gonçalves, são aqueles que se acrescentam à figura típica do ato para mudar-lhes os respectivos efeitos. São cláusulas que, inseridas, tanto por declaração unilateral quanto pela vontade das partes, acarretam modificações na eficácia do ato.
Vamos examinar cada um deles, a começar pela condição.
A condição é prevista no Código Civil de 2002, em seu artigo 121, como a cláusula que subordina o efeito do ato jurídico a evento futuro e incerto. Ela se estabelece exclusivamente por vontade das partes, jamais por imposição de dispositivo legal.
Importante destacar que nem toda condição tem o poder de influir na eficácia de um negócio jurídico. Para que ela tenha esse poder é necessário que ela seja lícita, ou seja, não contrarie a lei, a ordem pública e os bons costumes, sob pena de gerar nulidade do negócio jurídico. São, ainda, vedadas as condições que privam as partes de todo o efeito do ato ou que o sujeitam ao puro arbítrio de uma das partes.
Além de lícita, a condição tem que ser possível, não havendo nenhum impedimento de ordem física ou jurídica para seu cumprimento. Já com relação aos efeitos da condição, há uma divisão bastante importante entre condição resolutiva e suspensiva.
Como bem explica o Professor Flávio Tartuce, condições suspensivas são aquelas que, enquanto não se verificarem, impedem que o negócio jurídico gere efeitos. Podemos usar como exemplo o pai que promete dar um carro a seu filho se ele passar no vestibular.
Já as condições resolutivas verificam-se quando o direito transferido pelo negócio jurídico é resolvido, extinto, diante da ocorrência de um evento futuro e incerto. Outro exemplo: um pai que combina com o filho que vai lhe dar uma mesada até que ele se case. Neste caso, o filho já está gozando da mesada, que será extinta caso ele venha a se casar.
Contudo, existem alguns negócios jurídicos que não admitem condição. Via de regra, diz o Professor Carlos Roberto Gonçalves, a condição é possível nos atos de natureza patrimonial, com algumas exceções. Dentro dessas exceções está a aceitação e renúncia de herança. A condição não pode integrar os de caráter patrimonial pessoal, como os direitos de família puros, e os direitos personalíssimos, como casamento, o reconhecimento de filho, a adoção e a emancipação.
O termo, por sua vez, nos dizeres de San Tiago Dantas (1911-1964), pode ser definido como o momento futuro, que se determina no tempo, em que os efeitos do negócio jurídico devem começar ou devem cessar de ser produzidos. O momento definido (portanto, certo), como define Renan Lotufo, pode ser referido diretamente no calendário, sendo, então, chamado de dies certus quando, ou pode ter como referência um acontecimento cujo momento não é possível precisar, mas que certamente ocorrerá, aí será chamado de dies incertus quando.
O mais comum, porém, é ver essa divisão chamada de termo inicial (dies a quo), em que têm início os efeitos do negócio, e termo final (dies ad quem), que tem eficácia resolutiva na medida em que ele extingue os efeitos do negócio.
Flávio Tartuce alerta-nos para o fato de que não se deve confundir termo com prazo. Prazo é justamente o lapso temporal que se dá entre o termo inicial e o final.
Com estas explicações, já é possível ver a diferença entre condição suspensiva e termo inicial. No termo inicial, suspende-se o exercício, e não a aquisição do direito, ao passo que, na condição suspensiva, suspende-se o exercício e a aquisição do direito.
Em outras palavras, quando há termo inicial, o próprio direito já está adquirido desde o momento em que o negócio jurídico foi celebrado. O Professor Renan Lotufo explica melhor: se o contrato está celebrado e válido, sua execução é que está sujeita à ocorrência do termo inicial, restando o direito da parte ao cumprimento do contrato já adquirido.
Por fim, o Professor Vicente Rao (1892-1978) define modo ou encargo (artigo 136 Código Civil 2002) como uma determinação, imposta pelo autor do ato de uma liberalidade, que adere a este ato de liberalidade, restringindo o ato a determinados moldes desejados. Expliquemos melhor.
O encargo se apresenta como uma cláusula acessória às liberalidades, como, por exemplo, doações ou testamentos nas quais se impõe ao beneficiário uma obrigação. Também são possíveis declarações unilaterais de vontade, como a promessa de recompensa. Apesar disso, não é possível o negócio oneroso, porque equivaleria a uma contraprestação.
A literatura brasileira traz um belo exemplo de encargo no livro Quincas Borba do Machado de Assis, aquele do famoso “ao vencedor, as batatas!”. Neste livro, o protagonista Rubião herda todo o patrimônio do falecido Quincas Borba. Só que Quincas Borba colocou apenas uma restrição como condição para o recebimento da herança, que era cuidar do cachorro, também chamado de Quincas Borba.
No livro assim é redigida a condição: “Cuidar deste cachorro, nada poupando em seu benefício, resguardando-o de moléstias, de fugas, de roubo, ou de morte que lhe quisessem dar por maldade. Cuidando como se, finalmente, cão não fosse, mas pessoa humana”. Genial, não é mesmo?
Com relação à diferença entre encargo e condição suspensiva, o Professor Carlos Roberto Gonçalves apresenta um resumo interessante: a condição é suspensiva, mas não coercitiva. Ninguém pode ser obrigado a cumprir uma condição.
Já o encargo é coercitivo, mas não suspensivo.